Em audiência pública da comissão especial encarregada de analisar o projeto que altera a legislação de combate à corrupção (PL 4850/16), advogados e especialistas criticaram pontos da proposta, como as restrições ao habeas corpus e a permissão de uso de provas ilícitas em alguns casos.
O projeto prevê medidas que dividem opiniões de juristas, como o chamado teste de integridade para funcionários públicos. O teste consiste em simular a oferta de propina para ver se o funcionário é honesto ou não.
O projeto, apelidado de “Dez Medidas Contra a Corrupção”, foi enviado ao Congresso pelo Ministério Público Federal, com o apoio de 2 milhões de assinaturas.
Além do teste, a proposta tem outras medidas polêmicas, como a necessidade de o juiz ouvir o Ministério Público antes de conceder habeas corpus para réus que não estão presos e o confisco de patrimônio do corrupto mesmo quando não existem provas de que aquele bem é fruto de corrupção.
O projeto também aumenta as penas para crimes contra a administração pública e criminaliza o enriquecimento ilícito. Além disso, permite ao juiz não aceitar recursos quando considerar que eles são apenas para atrasar o processo.
Críticas
Para os participantes da audiência, as medidas comprometem garantias individuais previstas na Constituição. Segundo o juiz Marcelo Semer, do estado de São Paulo, o projeto tem viés acusatório e fere o ordenamento jurídico brasileiro em diversos pontos.
Ele criticou a possibilidade de prisão preventiva sem o devido fundamento, o aumento de penas sem levar em consideração a proporcionalidade das punições para outros crimes e a definição das penas de acordo com o tamanho do prejuízo.
“A proposta tem um viés acusador, cria tipos penais, aumenta alguns outros, abre espaço para uso de provas ilícitas, fragiliza o habeas corpus e parte da premissa errada de que não é possível combater o crime sem ilegalidade”, disse.
Para Semer, a proposta “se adequa ao velho lema de que os fins justificam os meios”. Ele criticou também limites aos recursos dos réus e à concessão de habeas corpus.
“Não ficou claro o que é recurso abusivo. Abusivo, no meu entender, é criar obstáculos para os recursos. Criar obstáculos aos embargos infringentes é incabível. Todo o arcabouço legal brasileiro é no sentido de não condenar em caso de dúvida. Os embargos infringentes não chegam a 5% do total. Não há estatística que demonstre que eles atrasam os processos. Aqui simplesmente se restringe direitos”, disse.
O juiz também criticou a previsão, contida no projeto, de que prova ilícita pode ser considerada válida se obtida de boa-fé. “O projeto dissolve o princípio da prova ilícita. E é uma contradição o conceito de prova ilícita de boa-fé. Permite provas ilícitas para contraditar álibi, ou seja, há um forte estímulo para a produção de provas ilícitas. O policial pode cometer crime para provar a mentira do réu. Mas o crime do policial é pior que o do réu”, disse.
Sem ler
Para o advogado Gamil Föppel, professor de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o projeto fere o processo penal. “O projeto é um engenho muito bem feito para rasgar o processo penal sob o pretexto de combater a corrupção. Mas não se combate a corrupção corrompendo o processo penal”, disse.
Para ele, as pessoas apoiaram o projeto sem ler. “Essas 2 milhões de pessoas assinaram um cheque em branco. O projeto prevê a flexibilização de garantias fundamentais. O problema é que o que causou isso passa, e a flexibilização continua”, disse.
Föppel criticou vários pontos do projeto, como o aumento de penas para crime de corrupção, a tipificação criminal do enriquecimento ilícito, as limitações para a concessão de habeas corpus e a permissão para o uso de provas ilícitas em determinadas circunstâncias.
“Se aumento de pena diminuísse crime, nós não teríamos mais crimes hediondos no Brasil. O crime de enriquecimento ilícito para servidor público é desnecessário, já que já existem os crimes de corrupção passiva e peculato. E o habeas corpus é tratado de maneira obscena”, disse.
Segundo o advogado, o uso de provas ilícitas e o chamado teste de integridade para servidores públicos, com a simulação de vantagens, permitem a prática de flagrantes preparados pela polícia.
“Peço aos senhores para não aprovarem essas medidas da maneira como estão, já que elas ferem o estado de Direito”, pediu aos deputados.
Omissões
Outro convidado, o sociólogo Alberto Carlos de Almeida, autor do livro “A Cabeça do Brasileiro”, disse que o projeto não atinge as causas da corrupção.
“O projeto não ataca a fonte: o processo eleitoral. Enxuga o gelo em vez de impedir que ele derreta. Se a gente não atacar a fonte, que é o problema da legitimidade do sistema político, não vai adiantar nada”, disse.
Almeida elogiou a iniciativa de discutir o combate à corrupção, mas destacou a necessidade de aperfeiçoar o sistema eleitoral, de maneira a garantir legitimidade à representação popular.
Corrupção na privada
Heleno Torres, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), apontou outra omissão na proposta: a tipificação de crimes de corrupção na iniciativa privada.
“É preciso também discutir corrupção privada, como cartelização de mercado ou atos que ferem a concorrência, e ampliar os tipos penais em relação a licitações”, disse.
Divisão
O projeto também divide os integrantes da comissão. Para o deputado Wadih Damous (PT-RJ), as medidas ferem as garantias individuais e a Constituição. Ele chegou a comparar algumas propostas a medidas fascistas.
“Alguns pontos do projeto ferem garantias constitucionais e quem faz qualquer crítica às medidas é apontado como defensor da corrupção. Isso é fascismo”, disse.
O deputado Sérgio Vidigal (PDT-ES) disse temer as expectativas criadas em torno da aprovação do projeto. “Minha preocupação é que a gente crie a expectativa de que a lei vai resolver os problemas e isso não acontecer”, disse.
Equilíbrio
Para o relator da comissão especial que analisa o projeto, deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), é preciso chegar a um equilíbrio em relação à proposta, sem frustrar a população.
“Respeito a opinião dos convidados, mas não dá para dizer que o ordenamento jurídico brasileiro é suficiente para combater a corrupção. Precisamos encontrar uma maneira de responder a 2 milhões de brasileiros. Mas a resposta tem que ser equilibrada, sem colocar em risco o direito das pessoas”, disse o relator.
Fonte: Câmara Notícias
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